Escrevi Fio do Silêncio em parceria com meu amigo, compadre e escritor, André Soltau. Somos ambos gaúchos, mas nos conhecemos em Santa Catarina, na linda cidade de Itajaí. Lá movimentamos o cenário literário do município. Junto com outros escritores e escritoras, fizemos parte da Setorial de Literatura de Itajaí, que deu mais qualidade ao Festival Literário de Itajaí, nosso querido FLI, o melhor do sul do Brasil, segundo o escritor Cristovão Tezza. Enfim, fizemos tudo o que estava ao nosso alcance para que os escritores e escritoras de Itajaí e redondeza fossem conhecidos, lidos, ocupassem o espaço que é seu e até remunerados pelo seu trabalho.
Poderia enumerar aqui tudo que fizemos, mas quero falar sobre o Fio do Silêncio.
Nas noitadas de vinhos e Pirão com linguiça, ao pé do fogão à lenha, decidimos escrever um livro juntos. Ele tinha a ideia de escrever um livro que o fio condutor fosse a solidão. Achei poética a ideia. Só que meu amigo já tinha os contos escritos, e eu teria que escrever os meus baseados nos dele. Coisa que, a princípio, não me pareceu difícil.
Mas as ideias não se formam no momento que a gente quer, e o André tinha uma data prevista para a publicação. Caso não desse naquele momento, teríamos que deixar passar muito mais tempo, o que não queríamos.
Enfim, eu li e reli muitas vezes os dele para me inspirar. Foi uma trabalheira maior do que se eu tivesse feito sozinha. Mas fiz e, modéstia à parte, me parece que ficou muito bom. Foram 12 contos de cada um. Não são sequência um do outro. Mas no fundo, no fundo, no Fio do Silêncio, em todo ele, há a tal solidão que permeou todos os contos.
A ilustração da capa foi criada pela artista e produtora cultural, Gika Voigt, companheira do André. Como sempre, Gika é imbatível nas ilustrações para capas.
Fio do Silêncio foi publicado em 2022, pela Kotter Editorial, em Curitiba. Se tiveres interesse é só entrar em contato com a editora.
Deixo aqui uma amostra dos contos.
Abraços
Kátia
OS PÉS E O FIO
André Soltau
Leve, leve, leve. Pousa o pé direito logo depois o outro. Passo, mãos, passo pescoço. Traços e uma linha tênue segura a vida. Dali só fica o voo. Em vertigem, olhei para a Solidão atônita com a coragem de pés tão singulares. Eu desenhava as cores duras do lugar com olhos em lágrimas. Linda a luz contrastante do corpo franzino equilibrado ao fio preto. Apenas um corpo no céu.
Com pés descalços na areia fina, Solidão roía unhas procurando seu melhor ângulo para segurar a possível queda. Meus traços compunham um desenho leve e colorido como uma aquarela. Divertia-me com a amiga em estado de extrema tensão e meus olhos doíam contra a luz que batia na lona quando ouvi o rufar de tambores anunciando o perigo próximo.
Nada tirava a concentração da menina com pés pequenos e seguros. Passo. Direita, esquerda e um rodopio. O coração bateu ligeiro quando encontrei ali uma metáfora dos meus dias sem cores. No imediato instante veio até mim a imagem de bares, bebidas e um soco. Humor instável e Solidão roía unhas na sarjeta. Por que a lembrança? Tanto tempo se passou. Outro rodopio, pés no fio preto e eu tonto com a imagem trazida até meus pensamentos. Solidão agora me olhava com uma surpresa reveladora.
Meus olhos voltavam ao lugar. Mudei de posição sentando nas arquibancadas mais baixas. O desequilíbrio pode levar ao chão os pensamentos sem fio. Cuidados com a emoção. Sentei ligeiro no chão de areia e guardei papéis. Melhor olhar em volta para não ser traído por metáforas tontas. Voltei a olhar um passo por vez. Fui acolhido por Solidão que parecia ver minhas vertigens. Não era diferente em botecos pé no chão.
Ali os meus desenhos voltaram ao interior. Sensibilizado com rodopios tão corajosos, meus sentidos queriam o voo e meu corpo pedia chão. Que ser humano chato sou. Uma parte de mim é asa e noutra sou raiz. Entendia meus olhos a Solidão que, presente ao lado, segurou o par de asas pedindo pés, chão e um minúsculo fio para me manter vivo. Ando em desalinho e sei de vertigens.
Não contente com o fio preto, passos cuidadosos e reviravoltas no ar, nossa menina ensaiou um voo em pleno ar. Sumiram as cores e a última lembrança eram de um corpo de menina que caia com uma fita vermelha presa ao pulso. Os tambores silenciaram com o grito trêmulo de Solidão. Fez-se escuro.
Acordei minutos depois com Solidão suando me abanava com um pano de retalhos. Os olhos demoraram a acostumar com a luz colorida vinda da abertura do teto. A menina do voo estava de joelhos com a mão esquerda no peito suspirando aliviada. Na rede de proteção, o músico agarrava os tambores e ria alto de minha síncope afetada.
É preciso equilíbrio para ver a múltipla face do humano. É preciso equilíbrio. Meu desenho borrou exatamente no fio preto que traçava a simetria da menina.
O BRAÇO NEGRO NO BRAÇO BRANCO
Kátia Nascimento
Meu ser só custava a crer em homens com seus palavreados fossilizados por uma vida de reles sedução.
Meu ser só, seguia só.
Houve um tempo de homens e idades que se coadunavam. Muitas tentativas. Em vão. Tudo em vão. Pequenas alegrias. Muitas angústias. Várias tristezas. É de se pensar que viver a dois é nocivo e que é preferível ser um eu-só a ser um eu-acompanhado-só.
Estava em um grande evento literário. Corri para não perder o início da palestra que me interessava. A sala estava cheia. Sentei-me com rapidez. Mal percebi quem estava ao lado. Sem educação, nem cumprimentei. Iria falar uma escritora que admirava muito. Não podia prestar atenção em mais nada. O que poderia ser mais importante?
Estou sempre tão absorta em meus interesses que não percebo o que está para mim à minha volta. Vejo o outro para o outro, nunca para mim. Mas o espírito e o corpo superam a mente quando nos libertamos.
Apoiei meu braço no braço da cadeira, sem notar que ali já tinha um. Baixei os olhos para ter certeza do que estava acontecendo. Havia ali um braço negro que se encostava no meu, causando-me sensações. O braço negro contrastava-se com o branco braço. Naquele momento, abusada, a mente fugiu, sem avisar. Ficamos o espírito, o corpo, os sentidos.
A palestra começou. Nada poderia ser mais importante do que as falas sobre literatura. E eu já não conseguia mais ouvir palavra. Aquele braço me atormentava. Não sabia se olhava para o dono. Decidi não deixar a mente voltar. Apenas aproveitar os lampejos que poderiam explodir em outro momento. Deixei-me encostar naquele braço negro, que me causava sensações. Deixei-me invadir por sentimentos há muito não sentidos como se estivesse solta num chão obsceno frio que se contrasta com o calor de corpos nus. Deixei-me até cair no ridículo, pois, não só “as cartas são ridículas”. Deixei-me desvairar, como quem alucina. Deixei-me ir. Como há muito não o fazia, deixei-me ir.
O braço negro agora, certo de que estava numa relação consentida, invadiu o espaço do braço branco. Decidiu fazer ali um recanto de paixão enlouquecida. Não mais palavras literárias. Não mais este ou aquele falando suas frases harmoniosas a serem exibidas em livros. Apenas dois braços, branco e preto, roçando-se numa espécie de balé clássico. Quando chegaram às mãos, os olhos levantaram-se para o encontro.
Meu ser só custava a crer em homens com seus palavreados fossilizados por uma vida de reles sedução. Mas não tinha experimentado o silêncio das palavras.